APRÈS LO PET, TOTZ ME CONCAGARIA
Tenho compreendido, ao passo que avanço na tradução dum corpus medieval variado, que o meu trabalho se equipara ao de um colecionador. O que me chama atenção, sobre o que decido escrever ou traduzir, são os eventos daquela poesia. Busco os seus momentos mais luminosos e singulares. A pretensão não é reconstruir a letra dos trovadores enquanto texto histórico ou encaixar as suas joias numa moldura de uma ideia própria de poesia, o que até então se fez ao traduzir os trovadores no Brasil. Ao contrário, a pretensão é a de recompor a partir do palimpsesto o ethos dos trovadores, capturar no ar o modus vivendi que nos legaram, o seu espírito. Trata-se mais de aproximar essa maravilha aos olhos merecedores do brasileiro do que cumprir qualquer propósito pessoal, embora o trabalho seja extremamente pessoal.
Foi, portanto, com um olhar de colecionador que folheei as “cantigas de seguir” até achar um contrafactum que fosse simbólico da essência da Europa trovadoresca. Um poema do rei Afonso X, o Sábio, juntamente com Arnaldo (provavelmente Arnault Catalan), um trovador provençal que havia vindo à sua corte: “Senher, ad-ars ie'us venh 'querer”. O nome do trovador provençal, “Ventadour”, foi interpretado maliciosamente pelas suas contrapartes: “ventador”, isto é, o indivíduo que teria por profissão produzir flatulências. Assim, Arnaldo e Afonso imaginam, em provençal e galego-português, na mesma estrutura do famoso poema da cotovia, uma cena na qual Arnaldo se apresenta ao rei Afonso como o melhor ventador do reino, oferecendo-lhe tal serviço para pôr em movimento todas as navegações. Afonso X se agrada do serviço e nomeia o ventador “Almirante Sisão” (o sisão é uma ave cujo canto tem o som de um peido), mas quando Arnaldo propõe usar de seu dom para embalar, gentilmente, as damas e fazer com que cheguem calmamente ao seu destino, o rei o aconselha que não é coisa de “bom doneador”. Essa segunda parte sobre as damas era já tema do provençal em outra tenção, com o Conde de Proença, onde ele defende ser cortês empuxar as damas daquela maneira, pelas quais, se estivessem em perigo de naufrágio, não hesitaria em se esforçar, ainda que acabasse “concagatz”. Mostra como o círculo trobadórico da Ibéria era mais marcabrunesco do que o dos seus pares provençais do fin’amors; mais dados ao grotesco, à troça dos motes inefáveis, como que o estilo rico dos de Provença fosse um exagero rebatido na simplicidade das coplas galego-portuguesas.